[Edição Especial Março 2020] Fracionamento de comprimidos: aproveitando ao máximo as medicações em tempos de necessidade

[Edição Especial Março 2020] Fracionamento de comprimidos: aproveitando ao máximo as medicações em tempos de necessidade

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Vinheta clínica

Um mecânico de 54 anos com diabetes tipo 2 e hipertensão teve um infarto do miocárdio em 2015.

Ele toma atualmente 81 mg de aspirina (venda sem receita) mais 6 drogas genéricas dispensadas mensalmente:

  • atorvastatina 40mg/d
  • ramipril 5mg/d
  • empagliflozina 25mg/dia
  • escitalopram 10mg/d
  • sildenafil 50mg 4 vezes/mês
  • duloxetina 90mg/dia (60mg + 30mg)

Ele estava estável e trabalhando em período integral, mas preocupado com a potencial escassez de medicações e custos, já que acabou de ser demitido. Ao  saber que o fracionamento de comprimidos poderia economizar dinheiro, ele comprou um fracionador de comprimidos que lhe custou cerca de 8 reais. Durante uma consulta de rotina (ou ligação para farmácia), você percebe que alguns comprimidos poderiam ser prescritos pelo dobro da dose por comprimido, e então fracionados. Isso poderia economizar para seu paciente idas desnecessárias à farmácia, e dinheiro precioso durante a pandemia do COVID-19. (Um farmacêutico também pode recomendar isso). No estudo EMPA-REG, 10 mg/dia de empagliflozina teve performance similar a 25 mg/dia.1 Dividir o comprimido de 25 mg para 12,5 mg/dia poderia economizar metade dos custos e estender seu suprimento. Duloxetina não pode ser fracionada. Porém, como não ajudou com a dor nas costas do paciente, você desprescreve gradualmente seu suprimento remanescente.

Fracionar comprimidos poderia ajudar a manter o suprimento de medicações durante a pandemia?

A pandemia COVID-19 poderia afetar o suprimento farmacêutico, o que já ocorreu inúmeras vezes no Canadá. Prescritores prudentes, farmacêuticos e pacientes podem ajudar todos a conseguirem o que eles realmente precisam. Este número da “Therapeutics Letter” trata de informações básicas que podem assistir profissionais de saúde e o público a  utilizar medicações com sabedoria.

Vinte e cinco anos atrás, a “Therapeutics Letter” número 10 mostrou que nós frequentemente prescrevemos doses mais altas do que o necessário para se atingir os efeitos farmacológicos pretendidos. Nós apontamos que “receitas com doses mais altas aumentam tanto a chance de efeitos adversos como seus custos”.2 Um estudo de 2018 descobriu que a Columbia Britânica detinha as taxas mais elevadas de não adesão relacionada a custos por conta dos preços dos medicamentos prescritos3, um problema nacional que preços mais acessíveis poderiam ajudar a resolver.

O Grupo Cochrane Hypertension mostrou que grande parte do efeito redutor de pressão arterial das drogas anti-hipertensivas ocorre no limite inferior dos intervalos de dose aprovados.4,5 Isso se aplica à maioria, se não a todas, as drogas usadas para hipertensão arterial. Estatinas também atingem muito do seu efeito redutor de colesterol no limite inferior do seu intervalo de dose. Isso geralmente é verdadeiro também para analgésicos, incluindo paracetamol, AINEs, opioides, gabapentina/pregabalina, duloxetina e tricíclicos.6 Estudos com antidepressivos, antipsicóticos, ansiolíticos, sedativos e muitos inalatórios (incluindo corticosteroides) encontraram padrões similares.7,8 Monografias oficiais de produtos disponíveis na internet frequentemente confirmam que altas doses não são superiores a “baixas” doses.

Para a maioria das drogas preventivas nós não temos evidência sobre efeito dose-resposta. Para as estatinas, a “Therapeutics Letter” número 87 concluiu em 2013 que altas doses não são clinicamente superiores a baixas doses.9 Isso também foi frequentemente demonstrado para AAS (aspirina).

Uma forma de estender prescrições é encorajar o fracionamento de comprimidos. Essa abordagem foi usada para ajustar doses para crianças, idosos, ou pessoas com baixo peso corporal e recomendada previamente tanto para segurança quanto para economia de custos.10 Mesmo sociedades ricas com poucos incentivos prévios para contenção de custos podem agora encarar isso como cativante, e nós podemos em breve ter razões convincentes para aplicar essa estratégia. Pessoas que checam suas próprias pressão arterial e glicemia capilar podem ser habilitadas a ajustar algumas drogas para seus alvos pretendidos (desfechos intermediários).

Dividir cápsulas é muito mais difícil. Enquanto muitas podem ser subdivididas por um paciente cuidadoso, isso não será discutido aqui.

Vantagens do fracionamento de pílulas

  • reduzir escassez ao estender suprimento individual de medicações;
  • minimizar idas à farmácia para renovação, facilitando o “distanciamento social”;
  • economizar dinheiro tanto para pacientes, quanto para o sistema de saúde;
  • melhorar adesão às medicações por pessoas com dificuldades financeiras.

Nem todas as drogas podem ser fracionadas com segurança, incluindo:

  • drogas com janela terapêutica estreita (ex. varfarina);
  • drogas cuja dose integral é essencial (ex: anticoagulantes, drogas quimioterápicas, contraceptivos orais, anticonvulsivantes para epilepsia, corticosteróides para insuficiência adrenal ou pacientes dependentes de corticoides);
  • antibióticos e antivirais (a não ser que aconselhado por um profissional);
  • biológicos, para os quais nós temos pouca evidência sobre dose-resposta;
  • comprimidos frágeis que facilmente se desfazem.

Quando em dúvida, pacientes devem consultar seu prescritor ou farmacêutico.

Comprimidos de liberação modificada

Fabricantes e farmacêuticos tipicamente advertem contra o fracionamento de drogas de revestimento entérico ou drogas de liberação programada (ER/CR/CD/SR/LA, etc.). Dependendo da droga, isso pode ser excessivamente conservador. Por exemplo, a “Therapeutics Initiative” não encontrou razão científica do porquê fracionar um inibidor de bomba de próton (IBP) o impediria de suprimir ácido estomacal. (Figura 1) Engolir um fragmento com um copo cheio de água contribui para absorção. Drogas de liberação programada com frequência tem um intervalo intrínseco relativamente amplo entre a concentração de pico (Cmax) e o tempo ao pico (Tmax). Se um pico súbito puder causar uma sedação profunda, baixa pressão arterial, ou depressão respiratória, fracionar a dose pode não ser seguro. Drogas destinadas à liberação no intestino grosso como 5’ASA (Asacol) ou L-DOPA de liberação controlada (Sinemet CR) não devem ser fracionadas a não ser que não haja outra alternativa.

O fracionamento de comprimidos não é para todos

Fracionamento de comprimidos pode ser inapropriado para pessoas com condições instáveis, complicadas ou perigosas. Os prescritores mais responsáveis devem determinar a segurança de quaisquer mudanças possíveis. Para pessoas com graves condições psiquiátricas, um prescritor que conhece o paciente deve ser consultado.

Quais as evidências dos benefícios e segurança do fracionamento de comprimidos?

A Columbia Britânica tem uma tradição modesta de fracionamento de pílula que poderia facilmente ser melhorada. Em 2006, fracionando apenas 2,6% das prescrições de estatina, foram ecomizados  2,3 milhões de dólares.11

Em 2012, uma revisão de estudos sobre fracionamento de comprimidos (estatinas, anti-hipertensivos e um antipsicótico) sugeriu que a poupança de custos poderia ser alcançada sem desfechos clínicos adversos.12

Em 2015, uma revisão da CADTH (Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health) avaliou custo-efetividade e efetividade clínica e encontrou uma diretriz, do Liverpool Children’s Hospital.13 Para pacientes hospitalizados, ela recomenda fracionar o comprimido ao longo do sulco central, e nunca com segmentos menores que um quarto.

Pode-se considerar um “feriado de remédio” ou desprescrição?

Em qualquer revisão de medicação, vale considerar um “feriado de remédio” (desprescrição temporária) ou um teste de desprescrição permanente.

Como escrever um fracionamento de comprimido ou desprescrever uma prescrição

Comunique claramente e sem ambiguidade. Exemplo parcial para o caso da vinheta clínica:

  1. Atorvastatina comprimidos de 80mg. Dispensar 45 comprimidos para durar 90 dias. Tome ½ = 40mg diariamente para prevenção secundária de doença isquêmica do coração.
  2. Empagliflozina comprimidos de 25mg. Dispensar 45 comprimidos para durar 90 dias. Tome ½ = 12,5mg diariamente para prevenir complicações do diabetes tipo 2.
  3. Escitalopram comprimidos de 20mg. Dispensar 45 comprimidos para durar 90 dias. Tome ½ = 10mg diariamente para depressão.
  4. SUSPENDER duloxetina (paciente reduzirá gradualmente seu suprimento remanescente).

Conclusões

  • Considere desprescrever. Esse paciente realmente precisa dessa medicação? Seria possível tentar suspendê-la?
  • Considere fracionamento da pílula para estender as prescrições e economizar dinheiro. Isso pode contribuir para o “distanciamento social” ou quarentena, e estender suprimento de drogas. Reduzir a dose à metade pode funcionar bem para muitas indicações. Fracionar comprimidos de dose mais alta pode manter a dose a um custo menor.
  • Algumas drogas, ex. anticoagulantes (“afinam o sangue”) não podem ser fracionadas.
  • Pacientes que considerem essas estratégias devem conversar com seus prescritores ou farmacêuticos, se possível.

Tabela: Economias potenciais com fracionamento de comprimido (vinheta clínica)
Algumas medicações de marca custam muito mais (ex. Lipitor, Altace, Cipralex)
Preços de Columbia Britânica baseados no programa “BC PharmaCare Low Cost Alternative Program“, 01 de Março de 2020

Total de economia possível pelo fracionamento de comprimidos e desprescrição de 1 droga:   ≈$ 1300
(Pessoas usando medicações de marca poderiam economizar ainda mais se trocarem por genéricos)
*máximo reembolsado pelo BC PharmaCare; farmácias podem cobrar mais


Referências

  1. Therapeutics Initiative. EMPA-REG OUTCOME Trial: What does it mean? Therapeutics Letter. July-August 2017. 107:1-2. https://ti.ubc.ca/letter107
  2. Therapeutics Initiative. Dose titration: Minimize to maximise. Therapeutics Letter. October 1995. 10:1-2. https://ti.ubc.ca/letter10
  3. Law MR, Cheng L, Kolhatkar A, et al. The consequences of patient charges for prescription drigs in Canada: a cross-sectional survey. CMAJ Open. 2018. 6(1):E63-E70. DOI: 10.9778/cmajo.20180008
  4. Musini VM, Nazer M, Bassett K, Wright JM. Blood pressure-lowering efficacy of monotherapy with thiazide diuretics for primary hypertension. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2014. Issue 5. Art. No.: CD003824. DOI: 10.1002/14651858.CD003824.pub2
  5. Heran BS, Wong MMY, Hera IK, Wright JM. Blood pressure lowering efficacy of angiotensin converting enzyme (ACE) inhibitors for primary hypertension. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2008. Issue 4. Art. No.: CD003823. DOI: 10.1002/14651858.CD003823.pub2
  6. Therapeutics Initiative. Gabapentin and pregabalin: Are high doses justified? Therapeutics Letter. January 2019. 117:1-2. https://ti.ubc.ca/letter117
  7. Adams NP, Bestall JC, Jones P, et al. Fluticasone at different doses for chronic asthma in adults and children. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2008. Issue 4. Art. No.: CD003534. DOI: 10.1002/14651858.CD003534.pub3
  8. Li C, Xia J, Wang J. Risperidone dose for schizophrenia. Cochrane Database of Systematic Reviews. 2009. Issue 4. Art. No.: CD007474. DOI: 10.1002/14651858.CD007474.pub2
  9. Therapeutics Initiative. High dose versus standard dose statins in stable coronary heart disease. Therapeutics Letter. July-August 2012. 87:1-2. https://ti.ubc.ca/letter87
  10. McCormack JP, Allan GM, Virani AS. Is bigger better? An argument for very low starting doses. CMAJ. Jan 2011. 183(1):65-69. DOI: 10.1503/cmaj.091481
  11. Dormuth CR, Schneeweiss S, Brookhart AM, et al. Frequency and predictors of tablet splitting in statin prescriptions: a population-based analysis. Open Med. 2008. 2(3):e74–e82. https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21602952
  12. Freeman MK, White W, Iranikhan M. Tablet splitting: a review of the clinical and economic outcomes and patient acceptance. Consult Pharm. 2012. 27:239-53. DOI: 10.4140/TCP.n.2012.421
  13. Canadian Agency for Drugs and Technologies in Health. Pill splitting: A review of clinical effectiveness, cost-effectiveness, and guidelines. Rapid Response Report. June 2015. https://cadth.ca/sites/default/files/pdf/htis/june-2015/RC0663%20Pill%20Splitting%20Final.pdf

Tradução para Português realizada pelos médicos de família e comunidade Dr. Alexandre Calandrini, Dr. Gabriel Glebocki e Dr. Lucas Bastos de São Paulo, Brasil. (Muito Obrigado!)

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